quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

tratar bem o ano que é novo

Vou tratar bem o ano que me oferece o virar do calendário. 
Ofereço-lhe sementes para colher pés de margaridas.
Para dar aos que navegam no mar comum, em busca de terra firme,
nas marés do riso, das lágrimas, nos silêncios, nas distâncias e sempre sempre no bolsinho do meu coração vivem.
Para cada ano desejo que a dança da alegria se torne a norma.
Feliz sementeira e colheita em 2016. As de 2015 já comi.


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Não, não vou esperar

Não, não vou esperar que chegue o dia em que tudo vai ficar bem, o dia que vou ter as contas todas pagas, a casa cheia de quadros e almofadas a condizer, o dia em que todos os livros se encaixarem com perfeição nos lugares das estantes, não vou esperar a alma se conformar sem que mais lama a venha tapar, e a segurança seja o meu lema. 
Esse dia não chega, nem cabe na estrada que cubro de histórias. Esse dia não cabe nem chega no corpo pequeno que me acolhe, não cabe no tempoque me sobra, na idade que me abandona, na casa pequena que me cobre o corpo. Nela e nele me aconchego porque as suas paredes pequenas me protegem e são imensas para conter a minha imaginação. Não, não vou esperar o dia certo chegar. Não, não vou esperar o dia final para começar. No escuro vazio do navio negreiro que me pariu em solidão, vou já hoje expandir o meu clarão, enquanto tudo ainda nem começou. Já não tenho tempo para me esquecer de ouvir o mar. O choro da alegria. O calor de uma gargalhada. O gemido do amor. Vou já continuar enquanto sou criança. Nem vou precisar de dormir para sonhar.
Pé ante pé, vou ainda hoje, enquanto está tudo trocado. Tudo atrasado. Tudo vestido. Tudo incerto. Tudo inseguro. Tudo errado.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Mini conto, E a vida é...


Foi muito jovem. Tornou-se ainda mais jovem num corpo sem esperança. Testemunhou e criou várias vidas. Foram muitas as aventuras. As glórias, os aplausos, as lágrimas de alegria. Muitas viagens. Muitas dores derramadas na tristeza que brotava dos olhos. Amores que nela se esculpiram e gravados ficaram. Depois de cada momento, um abraço e um coração de novo reunido, depois de em mil pedaços se ter partido. Quando abraçou o último amor.
Recebeu um desfiar sem conta de despedidas. Muitas imagens que viu desabrochar numa flor. A sua flor.
Os erros, tantos quantos gotas de chuva num ribeiro, foram-se transformando em memórias. O sol aquecia-os com a sua luz e deixava-os ser... apenas histórias. Caminhos destravados foram percorridos, talentos inatos desconhecidos que um dia livres, abriam caminhos outrora trancados.
Agora, bastava-lhe a simplicidade de se embrulhar na manta e ver a vida se desembrulhar. Tudo era precioso. Deixava-se levar. Retratar com a imaginação a beleza de uma lua cheia, fumar um cigarro ao anoitecer observando os ninhos das cegonhas, perder-se no infinito da imagem de um fogo que se levanta, numa louca espiral em dança. Agora, bastava-lhe rir com amor, com os loucos que amava, até ficar com a pele da barriga arrepanhada e os olhos a lagrimar.
Restava-lhe esperar o momento de se lhe reunir, sem pressa. Nos sonhos davam-se as mãos, com a esperança do reencontro. Adivinhava a excitação e tremia.
E no mais solene momento da vida, nas asas do último compasso da sua melodia, ele, agarrou-lhe na mão e ela, deixou-se nos seus braços voar.


Mini conto E... que o amor nos salve...

Tinha uma vida equilibrada. Com a pessoa certa. Podia dizer que sabia o que era a felicidade. A partir do momento em que ela entrou,desarrumou todas as gavetas, mexeu em todos os cantos, despiu-o, desabotoou-lhe os botões da casa que regulava o balanço do ser. Entranhara-se na corrente sanguínea. Eram magia plasmada nas mãos um do outro. Dançavam enquanto as mãos se conheciam, os pés se acariciavam e no peito aconteciam. Para sempre a dança de ambos. 
O equilíbrio era um bem que ambos tinham perdido. Desde então, ela tornara-se o que ele nunca tinha tido. Tudo. O equilíbrio que lhe restava era o que lhe vinha da sua atenção. Era a pessoa errada que ele tinha. E a única certa. Silenciosamente transformadora como a água em terra seca.
Desde que com ela dançava era todo felicidade.

Conselhos de Isabel Allende para quem quer escrever

Andava apreensiva. Por aqueles que dizem: "vem por aqui", "deves ir por ali" ou "nem devias ir"...
Até que ouvi e li conversas de escritores que admiro. Como a que deixo aqui de Isabel Allende.
Mas antes deixem-me contar uma história, a minha.
Os que como eu fazem arte com o coração (os heartists), são frágeis, sensíveis, vulneráveis mas também muito corajosos quando não se deixam influenciar por factores negativos externos.
É uma linha ténue e frágil que lembra a espada de Dâmocles, sobre a insegurança vinda de um poder. Este, o de contar histórias que sejam importadas para dentro de um leitor. Em prosa ou poesia.
Há quase 50 anos que leio. Muito e de tudo. Selecciono os autores que mais me emocionam. É um hábito que mantenho. Por puro deleite.
Desde cedo em criança, costumava refugiar-me nesse mundo e nela consumia o tempo. Era totalmente absorvida pelas histórias. Ninguém me via, ninguém conseguia comunicar comigo. Se desaparecia sabiam que eu só podia ter fugido com um livro.
Comecei a escrever seriamente, sobre tudo o que me inspira, há muito menos tempo. Depois de ganhar alguma confiança e de ler muito.
Hoje esta sabedoria vem-me do coração: mesmo que fosse uma sem abrigo, teria este permanente estágio não remunerado- a escrita - e apareceria ao trabalho diária e intensamente, para contar histórias.
Porque é a minha compulsão, o meu ópio, a minha vertigem, a adicção que eu fumo, bebo, como e durmo.
Mas ainda estou a ganhar confiança e chão.
Escrevo o que a inspiração me dita. É o meu treino diário. Posso não vender livros, não ganhar dinheiro com a literatura, mas sei que uma força maior me impulsiona que é a de continuar a escrever.
Imagino que partilhe este modo de ser com todos os que fazem da arte da escrita a sua fonte de nutrição das suas vidas.
Ou qualquer outra arte que venha de lugares insondáveis.
Por maiores que sejam os problemas, por maiores que sejam as críticas negativas, por maior que seja a falta de apoio de alguma forma, quem escreve, sabe que não pode deixar de o fazer.
A qualquer hora do dia ou da noite a porta está aberta para receber a dona da casa, a dona inspiração, que se senta, instala confortavelmente e dita as regras.
E eu, visita, obedeço-lhe.
Um dia, quem sabe, terei mais alguns livros.
Agora estou em fase de testes e ensaios. Uma dia posso ter peças prontas a apresentar. Lançar a minha nave e caminhar na lua.
Não me preocupo. Apenas me preocupo em escrever os resultados das visitas da minha dona. Acompanho-a pelos caminhos por onde me conduz.
Preocupo-me sim, em agradecer ao grupo dos poucos que vão acompanhando os ensaios, os mais calados que observam sentados no lado onde as luzes do teatro não incidem e, os que vão dando uns aplausos quentes que inundam de certezas a minha dona, a dona inspiração.
Por cada aplauso, ela tem mais confiança para se fazer presente uma e outra vez, e, afirmar com uma vénia : sei que quero ir por aí.

A todos os autores/escritores e leitores que um dia queiram escrever, deixo estes conselhos de Isabel Allende que construiu personagens belíssimos, de uma riqueza única, tem histórias absorventes e é uma das autoras que mais me emociona.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Despedida

Entre malas com excesso de bagagem, vento e música, embrulho esta história que acabo de compor,( baseada em vidas de verdade) e levo na minha mala. Porque as histórias verdadeiras são as mais belas. Ofereço aos suspeitos do costume. A tribU. A maravilhosa pintura que a acompanha vem do Sidney Cerqueira
Feitiço
Partiu no porão do navio. Com grilhões nos pés amarrada ao banco de madeira. Grávida de um terceiro. Com dois filhos pequenos ao seu lado.
-Antes assim,pensava Mel. Vou ter com o indiano,o amor da minha vida.Sou metade de um coração por causa do seu amor. A outra metade é a saudade que ele deixou ficar.
O barco sulcava violentamente as águas atormentadas, como a sua alma e o seu coração.Quando todos vomitavam quase perdiam a vida.
O barco rumava entre Cabo-Verde e São Tomé levando escravos para as roças de cacau.As crianças eram também obrigadas a fazer uma jornada igual aos seus pais.
O indiano não era indiano apenas parecia indiano. Caboverdiano, lindo, de cabelos negros e lisos e olhos azeitona. Todas as mulheres por ele suspiravam. Julio de seu nome.
Julio e Mel apaixonaram-se no momento em que as suas almas se reconheceram.
Mel acreditava que assim era. Agora o colono levava-o para longe da sua ilha, para outra bem distante.
Tanto tinha lutado que preferia ser escrava nas roças que ficar sem a proximidade do cheiro, do olhar, dos beijos quentes do seu indiano que não era indiano mas caboverdiano.
Mais dois filhos nasceram na roça. Todos trabalhavam jornadas duras e suadas.
A terra santomense recebia o sal das lágrimas e do suor, temperando com ele a fertilidade do cacau amargo que dela despontava.
Mel a estrangeira, desde o dia que pisara a terra, era odiada pelas outras mulheres locais. Todas queriam o belo Julio.
Fizeram-lhe um feitiço para a matar. Assim que ela morresse, tomariam conta dos pequenos e do belo e vigoroso homem caboverdiano que parecia um indiano mas que na negrura dos seus olhos apenas via luz nos olhos cor de avelã da sua doce Mel.
Mel ficou doente. Caiu na esteira com febres altas, talvez as febres dos mosquitos, talvez feitiço.
Julio não podia estar com ela, trabalhava sem descanso. Era um dos melhores escravos da roça.
-Pai pede para eu ficar ao lado da mãe a cuidar da mãe,pediu o filho mais velho, Manuel. Julio olhou o filho e viu-lhe as lágrimas que escorriam no rosto sujo. Julio sabia que só este filho poderia dar vida à mulher que o fizera nascer.
Em pouco tempo Manuel era autorizado a ir para junto da sua mãe. Manuel, o mais velho, de sete anos, inteligente como poucos sabia ler e escrever e entendia a língua da sensibilidade. Para tanto bastava estar presente e com o seu olhar avelã cristalino como o da sua mãe, trazia conforto.
-Este nosso filho não é deste mundo, dizia em surdina Mel deitada com a cabeça apoiada no peito de Julio.
Manuel entrou na casa de pau a pique construída pelo pai e olhou a sua mãe. Ali estava deitada de lado, respirando pesadamente entre gemidos. Esfregou-lhe os pés. Afagou-lhe a fronte. Deitou-se na esteira ao seu lado abraçando-a pelas costas e ficou em sossego. Adormecido.
Manuel não voltou a acordar no mundo que nem sempre ama os vivos. Foi para aquele de onde veio, no útero de sua mãe Mel.
Diz quem viu que o feitiço passou pelas costas de Mel para o coração de Manuel e este fez parar.
Julio cansado, com a doença da tristeza juntou-se a Manuel, quando a folha da bananeira ficou verde, pronta a deixar rebentar o fruto.
Com oito filhos, Mel recuperou da dor da vida, e, feita de coragem regressou à sua ilha em Cabo-Verde. Cuidou da vida de todos os seus filhos, metade seus metade do seu amor Julio, com o mesmo desvelo e amor de sempre. Como mel.
Feita metade de um coração por causa do seu amor por eles. A outra metade feita da saudade que Julio e Manuel deixaram ficar.
Em São Tomé, Mel, deixou o feitiço enterrado.


Para este quadro, Despedida, de Sidney Cerqueira escrevi um poema. Visitem a nossa exposição conjunta no Centro Cultural da Malaposta. Ele pinta eu poemo-lhe as pinturas

tenta não me esquecer
encontras-me do outro lado do mar
quando as ondas os teus pés beijarem
são os meus que vão trazer lágrimas
para os teus lábios salgar
tenta não me perder
quando vires o sol desaparecer
do outro lado acontece um sublime amanhecer
quando em segredo te acordar
tenta não me esquecer
quando a lua te acariciar
sou eu vestida de nostalgia
para em ti me procurar
tenta te lembrar
que de noite ou de dia
te vou sempre encontrar
para que nunca sejas capaz de me esquecer








domingo, 9 de agosto de 2015

“Agimos como mortais no que diz respeito aos nossos medos e agimos como imortais no que diz respeito aos nossos desejos”. Séneca

Em memória de Adalberto Gourgel, homem generoso na luta pelos direitos dos albinos, grande e jovem fotógrafo angolano.
A vida dele,curta, tão intensa quanto importante mostrou um talento absoluto num ser humano imperfeito e tão cheio de virtudes.
Cumpriu certamente muitos dos seus desejos e deixou as suas sementes, o símbolo de uma vida plena. Como este seu retrato o é.
“Agimos como mortais no que diz respeito aos nossos medos e
agimos como imortais no que diz respeito aos nossos desejos”. Séneca

Tempo que não se demora
É o tempo contido na vida que deve ser gentilmente preservado, 
com amor usado
cuidadosamente acarinhado
Não os bens materiais
Não os meus medos
Em cada dia que passa gasto o meu corpo, a minha mente
Na rua o tempo passa por mim.
Se eu o perder não o volto a ter.
Eu sou vulnerável e frágil não o tempo.
O tempo esgota-se em mim.
Mas eu não sou inesgotável.
Posso sim esgotar o tempo sem do tempo me aproveitar.
A vida tem de começar no começo
sem esperar que venha um outro tempo.
Esse, o tempo de acabar.
Viver vai-me levar todo o tempo
que eu decida ocupar-me profunda e dedicadamente à vida.
Porque ela merece que eu empenhe todo o meu tempo.
O resto que eu não fizer
-os meus desejos-
é toda a existência a ir-se embora abraçada ao tempo.
E com ela perco o tempo no tempo da minha vida.
Como num destino planeado com o tempo
quero viver no tempo de cada momento
ser inevitavelmente o tempo usado e contido na vida
e não o tempo que tenho de vida.